Kelly Trindade: mãe, atleta e mulher que voa — uma história de equilíbrio e paixão pelo esporte
Do triathlon ao voo livre, da montanha à maternidade: conheça a trajetória inspiradora de Kelly Trindade e como ela transforma cada fase da vida em movimento.
Kelly passou correndo por mim e por uma amiga em uma trilha da Ilha do Mel. Tinha absoluto foco na corrida, mas sem perder a simpatia: sorriu com o olhar para nós, como quem diz “Bom dia, meninas!”, e seguiu... até virar um pontinho distante no Morro do Sabão. Minha amiga concluiu de imediato: “Que simpatia desta atleta! Um dia eu corro, pedalo, nado, subo montanhas, surfo, faço yoga e, especialmente, sorrio para todos como ela.”
Foi a primeira vez que vimos a Kelly — e a impressão, claro, foi das melhores. Mal imaginávamos que teríamos a sorte de vê-la e conversar tantas outras vezes, pois ela viria a ingressar em nossa escola.
Kelly tem hoje 38 anos. É curitibana, arquiteta, empreendedora, professora, gestora, triatleta e nossa aluna — ou, como gostamos de dizer, uma Vento Nortenha.
Seus pais se separaram quando ela e o irmão, cinco anos mais velho, ainda eram crianças. A mãe foi quem se virou nos trinta para dar conta dos desejos e da educação dos dois. O pai vivia no Mato Grosso do Sul, e a pensão que enviava era inteiramente administrada pelos próprios filhos — algo que Kelly acredita ter sido um presente em forma de responsabilidade: desde adolescentes, aprenderam sobre organização financeira, inclusive a poupar.
Kelly casou-se, se divorciou. E quando o pai enfrentou um câncer, ela esteve ao seu lado em tudo: consultas, tratamentos, internações... até os últimos momentos.
Desde os 4 anos de idade, ela e o irmão foram incentivados pela mãe a praticar esportes — a começar pela natação. O gosto pelas atividades físicas só cresceu: academia, dança, lutas, aulas de educação física (inclusive as teóricas). Aos sábados, na pré-adolescência, o programa era com a mãe levando os dois para o escotismo.
Vento Norte: Kelly, a sua mãe já sabia — mesmo antes dos estudos e comprovações — o que hoje é evidente: o escotismo desenvolve em crianças e adolescentes um senso de responsabilidade individual, consciência coletiva, respeito pelo meio ambiente... e, claro, o gosto pelas aventuras ao ar livre.
O que você traz do escotismo para o montanhismo e o voo livre atualmente?
“Muito da minha vida hoje foi influenciada pelo escotismo. Desenvolvi a independência e a liderança, aprendi sobre o respeito à natureza e exercitei a paciência de cumprir pequenas tarefas em busca de um reconhecimento maior.
Na ficção O Homem Mais Rico do Mundo, do Rafael Vidac, ele compara as vitórias da vida com uma subida em montanha — e eu concordo completamente! Temos que mirar o objetivo e, mesmo quando o trajeto parece difícil e longo, é só abaixar a cabeça, se concentrar no próximo passo e trabalhar duro… que a gente chega lá.
Quem nunca olhou o cume do morro e se impressionou com a distância dele?”
Vento Norte: Você me lembrou um sentimento que tenho sempre: estou no pé de uma montanha e olho o cume... fico imaginando qual será a paisagem reservada lá em cima. E quando estou lá no alto, olho o fundo do vale e me pego pensando nos segredos que ainda existem por explorar lá embaixo.
Talvez por isso eu goste tanto da música do Jorge Drexler: “Creo que he visto una luz al otro lado del río.”
Chego à conclusão de que não existe um caminho pronto, determinado — ele se faz ao caminhar. E, nesse processo, nos molda, nos ensina. Chegar ao topo é um símbolo da conquista da trajetória, porque o que realmente importa é o quanto absorvemos da sabedoria do caminho.
Você tem isso também, Kelly?
“Muito! Uma frase que eu digo sempre: eu só sou quem eu sou por tudo que passei.
Se algo tivesse sido diferente na minha vida, talvez eu não tivesse conquistado tudo que conquistei.
Comparo isso com o triatlhon. A minha conquista na prova não é a chegada, é todo o processo — todos os meses de preparação, os treinos, os sacrifícios, os aprendizados.
É isso que me emociona. É isso que me derruba lágrimas quando passo pelo portal.”
Durante um curso vocacional, duas áreas se destacaram para Kelly: propaganda e publicidade, e arquitetura e urbanismo. Foi aí que ela descobriu sua vocação — e optou pela arquitetura. Logo após se formar, abriu o próprio escritório, que mantém até hoje. E foi justamente esse passo profissional que impulsionou uma rotina onde o esporte passou a ocupar um lugar de destaque.
“Comecei a ‘levar a sério’ o esporte quando resolvi abrir meu próprio escritório. Minha produtividade aumentava à noite, mas eu me sentia mal em acordar cada vez mais tarde para trabalhar.
Então arrumei um compromisso com o esporte, que me fazia levantar cedo — e assim, eu começava o dia com outra energia, chegava mais cedo ao escritório.
Logo em seguida, percebi outro benefício: os treinos mais intensos começaram a diminuir as crises da Síndrome Sincopal de Vasovagal, que me acompanhou por toda a juventude. É uma síndrome bem comum entre mulheres jovens. Nem sempre é diagnosticada, pois fora um desmaio rápido em lugares quentes ou abafados, não causa consequências graves. Mas viver com ela não é simples — e o esporte foi meu grande aliado.”
O esporte surgiu como uma forma de equilibrar a rotina e buscar qualidade de vida. Mas hoje, sendo uma atleta de alta performance, a busca por equilíbrio se intensificou: alimentação, descanso, treinos, leituras, trabalho e lazer — tudo precisa entrar em harmonia.
Kelly, você programa a sua semana detalhadamente para cumprir esse “roteiro”?
“Faço acompanhamento nutricional desde os meus 19 anos (eu era gordinha!) e, de lá pra cá, passei a gostar de cuidar da minha alimentação.
Programo meu celular para silenciar as chamadas no horário em que preciso dormir — assim garanto as horas de sono que considero adequadas para minha rotina naquele momento.
Apesar de ter o meu próprio escritório de arquitetura e poder ‘fazer meu horário’, controlo as minhas 42 horas semanais de trabalho. Não costumo faltar treino, porque, além de amar a sensação física e psicológica que ele me proporciona, ele também dita o ritmo do meu dia: influencia na alimentação, na saúde e até na produtividade no trabalho.
Agora, se sou rígida com essa programação? Não! Acho que o equilíbrio tem que acontecer inclusive na forma de buscar o equilíbrio. Tem dias que viajo e cuido menos da alimentação, tem noites em que saio com os amigos e acabo sacrificando o sono — e está tudo bem.
Somos seres humanos, orgânicos, mutantes... e precisamos respeitar isso.”
Esportes ensinam muito — sobre autoconhecimento, responsabilidade, disciplina, superação. São mestres silenciosos que nos treinam para a vida.
Kelly, o que você pode falar sobre isso?
“Pouco tempo depois de começar, participei da minha primeira competição de corrida. Depois veio o aquatlhon (natação + corrida) e, mais adiante, o triatlhon.
De cada uma dessas provas eu tirei lições — não só para a vida pessoal, mas também profissional. Até hoje, faço analogias, reflito e tomo decisões com base nessas experiências.
Apesar de já ter feito uma prova de corrida e ter ido bem, e de estar nadando com frequência, minha primeira prova de aquatlhon foi um desastre.
Fui coagida por algumas meninas no vestiário antes da largada. Entrei na prova insegura, com o psicológico abalado. E terminei tão exausta que lembro até hoje da expressão das pessoas me olhando no final, com uma certa pena.
Claro que fui pra casa chateada. Mas depois de pensar e pensar — e pensar de novo — tomei uma decisão: vou voltar lá e fazer o negócio direito.
Pesquisei, conversei com meus treinadores da época, mudei meu estilo de treino. E, claro, fiz outro aquatlhon depois — com muito mais confiança, garra e coragem. E colhi o resultado disso.
Quem nunca teve uma experiência profissional ruim? Daquelas em que a gente sai de cabeça baixa, coloca o rabinho entre as pernas, volta pra casa... estuda mais, trabalha mais, se prepara melhor — até conseguir o resultado que faz sentido pra gente?
Nesses anos de esporte, Kelly conheceu muitas histórias. Histórias de superação, de vitórias, de fracassos e de lesões — e foi observando tudo isso de perto que ela formou um perfil mais “conservador” na sua própria evolução como atleta.
“Acredito que é melhor dar um passo de cada vez do que dar dois e ter que voltar três.
Sempre digo às pessoas que vale a pena, sim, se desafiar — mas com calma, com respeito ao próprio tempo. Se preparar para uma prova mais difícil, mais longa, mais exigente… é uma experiência que ensina muito sobre todas as áreas da vida: os relacionamentos, a saúde, o equilíbrio financeiro, o trabalho, a vida em si.
Em 2018, fiz uma prova de triatlhon um pouco maior do que as de costume. Terminei muito bem, estava feliz, e no dia seguinte já voltei a trabalhar num ritmo intenso.
Mas nas duas semanas seguintes algo não estava certo: febre alta, exaustão, fui parar no hospital e recebi o diagnóstico inicial de infecção urinária. Depois descobriram que já era uma infecção nos rins.
Levei um susto. E junto com o susto, uma grande lição.
Nas férias daquele ano (2018/2019), li A Semente da Vitória, do Nuno Cobra — e aquele livro caiu como uma luva.
No ano seguinte, minha prova exigiu muito mais: disciplina com a alimentação, controle do sono, treinos bem programados, apoio da família, equilíbrio entre vida social e profissional.
Entendi, com mais maturidade, que o pódio não está só na linha de chegada. O verdadeiro pódio está nas conquistas que a vida esportiva proporciona — e que se refletem em tudo ao nosso redor.”
Quando começou a pensar no voo livre?
“Meu namorado é apaixonado por aviação e, desde que o conheci, sempre incentivei tudo que estivesse relacionado a isso.
Ele terminou o curso e logo começaria a dar instrução de voo para acumular horas no currículo — mas veio a pandemia, e a crise na aviação adiou alguns planos. Mesmo assim, ele nunca tirou os olhos do céu.
Num domingo de isolamento, fomos ver o pôr do sol no Cume do Cal. Ele ficou completamente deslumbrado com as velas no céu. Pouco tempo depois, já estava começando o curso de voo — e eu ali, ao lado, incentivando, apoiando, assistindo às aulas, ajudando a dobrar as velas.
Foi nesse processo que percebi: esse mundo não era tão distante do meu.
O carinho do Márcio no convite para que eu assistisse às aulas foi o empurrãozinho final que faltava. E comecei o curso.”
Você está no seu primeiro ano de voo livre. Embora ainda seja cedo para perguntar... já tem algum desejo no esporte?
“Gosto muito do clima social que o esporte proporciona — as amizades que nascem da paixão em comum.
Também gosto da ideia de conseguir interpretar e entender ainda mais a natureza: o vento, as nuvens, os sinais que até o matinho dá pra sabermos se é hora de inflar a vela ou não…
Acho que ainda é cedo pra saber qual tipo de voo vai me encantar mais. Mas quero, com esse esporte, conhecer, conviver e respeitar ainda mais a natureza.
Quem sabe até me desafiar em alguma prova… por que não?
Alguns anos atrás, se me dissessem que eu seria uma triatleta, eu ia dar risada!”
Kelly, para quem ainda não pratica nenhuma atividade física, mas gostaria de começar, o que você orienta?
“A primeira coisa é experimentar.
Não acredito que exista pessoa que não goste de atividade física — acredito que ainda não encontrou aquilo que gosta.
Existem esportes para todas as fases da vida e para todos os gostos. Uns trabalham mais força e explosão, outros exigem habilidade manual, reflexo, instinto.
E o melhor: a maioria oferece aula experimental. Então, se permita experimentar, testar, encontrar algo que realmente te toque.”
“A segunda coisa é organizar o esporte na rotina. Se programar para que ele vire um compromisso com você mesma. Entender que você é a pessoa mais importante da sua vida, e sua saúde é prioridade.
Se surgir um compromisso de trabalho ou com amigos no mesmo horário da sua atividade física, diga não. Nem precisa justificar — só proponha outro horário, outro dia. O que vejo por aí é muita gente se comprometendo com os outros... e se deixando em segundo ou terceiro plano.”
“E a terceira orientação: se encontrou algo que gosta e está praticando, busque um profissional. Uma equipe que te ajude a evoluir, a fazer as coisas do jeito certo.
Já treinei muitas vezes sozinha, por questão de horário, economia… Mas hoje vejo como é importante ter ajuda, orientação, assessoria. Isso evita lesões, faz você entender o porquê das coisas, e engaja. O progresso se torna constante.
Durante muito tempo, Kelly teve receio de mostrar para o mundo a atleta que também gosta de passar o fim de semana no morro, na trilha, na praia.
“Achava que iam me julgar, pensar que eu ‘gastava’ tempo demais com isso.
Mas, aos poucos, conversando com uma pessoa aqui, apoiando outra acolá, aconselhando uma terceira… percebi que tem muito mais gente inspirada por uma vida leve e saudável do que gente que critica isso.
A partir daí, abri minhas redes sociais, entrei em grupos de WhatsApp — inclusive profissionais — de incentivo à qualidade de vida: alimentação, esporte, meditação, encontros sociais, leitura.
E essa ‘responsabilidade’ de postar meus cuidados comigo mesma acabou virando mais uma motivação.
Me incentiva a continuar me cuidando. E seguimos assim: um ajudando o outro.”
Kelly, para finalizar: nos conte seus favoritos da trilogia livros, discos e filmes — aqueles que te inspiram nessa trajetória que falamos até aqui.
A Semente da Vitória, de Nuno Cobra — fala sobre equilíbrio, a importância da atividade física, alimentação saudável, a reconquista do corpo e o aprimoramento mental.
O Homem Mais Rico do Mundo, de Rafael Vidac — uma ficção sobre riquezas que não são materiais: saúde, relacionamentos. Um livro pra refletir.
10% Mais Feliz, de Dan Harris — sobre meditação, sem ligação religiosa. Uma ferramenta para acalmar os pensamentos, equilibrar as emoções e se tornar uma pessoa melhor, sem perder energia para lutar pelo que deseja.
Antifrágil, de Nassim Nicholas Taleb — um mergulho na ideia de que há coisas (e pessoas) que se fortalecem nas partes difíceis da vida.
Alegria, de Osho — sobre a felicidade que vem de dentro, sobre o percurso... exatamente aquilo que a gente vem conversando até aqui.
Filme: 100 metros, do diretor Marcel Barrena. Um homem diagnosticado com esclerose múltipla questiona as limitações do seu corpo e, com a ajuda do sogro, treina para uma prova de Ironman.
Atualização: novas aventuras
Cinco anos se passaram desde que essa entrevista foi originalmente feita — e a trajetória da Kelly só ganhou mais profundidade e beleza. Hoje, ela é mamãe da Liz.
Até os seis meses de gravidez, Kelly se manteve ativa no voo, com o mesmo cuidado e presença que sempre marcaram sua trajetória. Depois, veio uma pausa de sete meses — dedicada à gestação e à chegada de Liz, sua filha.
Hoje, Liz está com 2 anos e 2 meses — e a mãe segue voando, agora em novos ritmos, mas com o mesmo amor.
Atualmente, Kelly conta com 134 voos registrados no XC Brasil e 46 horas no ar — isso de forma oficial, já que existem muitos voos que não foram baixados. Tem em sua bagagem um curso de SIV, um de cross, e segue sendo uma presença forte e gentil entre as mulheres nos esportes de natureza. Incentiva, apoia e inspira — como sempre.
Entre os marcos desses anos, participou do seu primeiro Hike and Fly na primeira edição do Mata Atlântica EcoFestival, e desde então esteve presente em várias edições, incluindo a do Morro do Araçatuba. Também participou do Hike and Fly do Paraná, no Morro da Palha, que naquela ocasião ela fez caminhando, por conta da gestação. No último ano, participou do Hike and Fly de Jaraguá do Sul.
A chegada da Liz transformou ainda mais sua relação com o tempo e com o voo. Hoje, Kelly equilibra maternidade, trabalho, esporte e natureza. Sabe que a vida passa rápido — e por isso escolhe viver de forma presente, aproveitando ao máximo cada momento da infância da filha. Liz está sempre por perto, inclusive nas aventuras: esteve no Morro do Araçatuba durante o Hike and Fly. Foi o Luiz quem transportou Liz na trilha, para que Kelly pudesse competir. Resultado? Primeiro lugar feminino.
O Luiz, seu parceiro, reveza com ela os cuidados nas rampas de voo, contribuindo para o equilíbrio das responsabilidades e das conquistas de ambos. É uma parceria bonita de ver — generosa, real, construída na confiança. A constância permanece. Claro, não na mesma intensidade de um casal sem filhos, mas com a firmeza de quem escolhe se manter conectado ao que importa: os esportes, a natureza e a presença ativa na vida da Liz.
Hoje, além de todos os esportes já citados anteriormente, a Kelly inseriu mais um, pratica trail running, ampliando sua conexão com as trilhas e montanhas, com o mesmo brilho no olhar de quem, um dia, cruzou correndo o Morro do Sabão e deixou para trás mais do que pegadas — deixou inspiração.
Seus projetos atuais envolvem: Voar em novas rampas I Viajar mais I Participar, sempre que possível, das provas de Hike and Fly.
Sempre com o mesmo espírito: corpo em movimento, mente aberta, e um sorriso generoso — daqueles que a gente percebe antes mesmo da aproximação, ainda lá longe… como um pontinho no Morro do Sabão.
🟣 Este artigo reflete o compromisso da Vento Norte Paraglider com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), promovidos pela ONU.
ODS 3 – Saúde e Bem-Estar: ao abordar a constância e práticas integrativas como o esporte, a natureza e o autocuidado, reforçamos que saúde mental é parte fundamental da saúde integral.
ODS 5 – Igualdade de Gênero: desde 2005, incentivamos a participação feminina em todos os espaços, desafiando barreiras e abrindo novas altitudes para todas as mulheres.
ODS 15 – Vida Terrestre: valorizamos a conexão com as montanhas, o respeito ao ambiente natural e o uso responsável dos ecossistemas como parte do voo consciente e da formação cidadã de cada piloto.